terça-feira, 26 de abril de 2016

Era Abril em Abril


Era Abril em Abril


Em Abril
e em águas mil
eu vi o Tejo
e a gente
e as ondas
e a maré,
em Abril
eu vi o mar
de gente
a subir o Tejo
e o delírio
e o grito
e a canção
na Alegre praça
da canção
e nas praças todas
do meu Tejo.

Em Abril
eu vi o mar
e as ondas
e uma onda
gigante
de povo
e o meu país todo
a navegar.
Eu vi no Tejo
as Tejos novos
e os rios todos
a correrem
em torrente
e o meu povo
agitado.
Sem margens,
sem marés.

No Tejo
eu vi um povo
a navegar
contra as correntes.

Eu vi um povo
a libertar-se
das correntes.

E era Abril em Abril,
meu amor.
Eu vi.


António F. Martins


E era lá longe Abril

Era Abril de 1974 e eu estava na guerra, no mato do norte de Moçambique. Ou seja: Querendo a paz eu estava ali, dolorosamente ali, a fazer a guerra. Era Abril e em Portugal acontecia o momento tão esperado: chegava a liberdade e eu, desgraçadamente, tão longe.Aqui vos deixo um poema que escrevi pouco depois. Um dos meus “Poemas da guerra”:



E era lá longe Abril

Comunguei contigo em pensamento a liberdade e aquele dia, meu irmão.
Pensei-me junto a ti, contigo, dando vivas à esperada liberdade
despontada em manhã de Abril, em pátria de invernos e de longas noites,
em pátria morta a despertar.
Comunguei contigo em pensamento o divinal odor dos cravos que trazias 
cravados no teu peito.
Fiz-me junto a ti.
Contigo estive na cidade e naquele largo, onde, do cimo duma árvore, 
de braços nus desfolhaste gritos imensos de liberdade
e te fundiste num fraternal abraço de um em um com todos.
Comunguei contigo o Maio, o primeiro Maio, o da liberdade plena, 
das avenidas que eram mar em revoltas ondas de nós próprios 
e eu estive ali, contigo e contigo comunguei o tempo, um novo tempo 
prometido e tão aguardado, em cada cravo no cano duma espingarda. 
E de tão longe, eu sonhei uma flor qualquer ou uma savana inteira 
na ponta da minha espingarda.
Mas eu continuava ali com as dezanove balas prontas no carregador 
da minha espingarda.
Não havia flores ali.
Na guerra continuava a guerra.
Não havia desfiles, havia colunas na picada.
Não havia vivas a nada, havia mortes, havia silêncios. 
Continuavam os silêncios e Abril era um mês exactamente igual a Janeiro 
que é um mês de inverno e frio.
Não havia cravos e de vermelho só o sangue, 
o sangue novo de um país esvaindo-se e Abril tão longe.
Ali era o inferno.
Tão longe de ti, tão perto de ti fiquei naqueles dias 
em que não acabava o sonho e as notícias chegavam lentas.
E eu ouvi de ti que da guerra nunca mais a guerra
e que o sangue novo do meu velho país amadureceria nele 
e não na terra alheia quente e distante,
atravessada por ventos e por tempos que não eram os nossos ventos 
nem os nossos tempos.
E como eu sabia que era ao pé de ti o meu lugar, em rossios cheios,
em avenidas plenas, na nossa cidade, junto ao nosso Tejo mar de gente, 
ao pé dos nossos e da liberdade.
E a liberdade.
E eu aqui, tão longe, a comungar contigo em pensamento
e a fazer-me junto a ti, a estar contigo.
Eu estive contigo e sonhei contigo e abracei-te
e gritei contigo que nunca mais, que agora somos nós,
que nunca mais a guerra!
E eu aqui e as cartas e os jornais e a metrópole.
E eu aqui a fazer durar o sonho e o sonho que parecia eterno.
E eu fechava os olhos, por vezes rasos de lágrimas
de saudade incontrolada, deixava o mato e a guerra
e, pensando-me gaivota do meu Tejo, do norte de Moçambique 
partia num voo imaginário até Lisboa, dava-te o braço 
Liberdade acima e logo regressava do sonho. 
E então eu estava de novo ali, numa cama de insónias, 
cercado por um velho mosquiteiro, rasgado e permeável.
Era lá longe Abril. Tanto Abril e eu tão longe

António F. Martins
1974

Eu vi Abril acontecer

Eu vi Abril acontecer


Eu vi Abril desabrochar
e vi Abril a florir em Maio.
Eu vi Abril sem cravos
na ponta de uma espingarda.
Eu vi Abril num bairro de lata
no centro de Lisboa.
Eu vi Abril em Abril
a festejar o Abril em Portugal.
Eu vi Abril nos bairros pobres
a lutar contra a fome.
Eu vi Abril na fome
sentado à mesa da fome.
Eu vi Abril e Abril em mim
em cada acorde de viola.
Eu vi Abril chegar num outro Abril
sem cravos, sem palavras.
Eu vi Abril florir na mata
e uma guerra sem saber Abril.
Eu vi Abril numa varina
a apregoar a fome numa cesta.
Eu vi Abril na minha mãe
nuns olhos rasos de água e eu tão longe.
Eu vi Abril em muitas mães
nuns olhos rasos de água e tão longe os filhos.
Eu vi Abril e as mães do meu país
num cais e lenços brancos.
Eu vi Abril nas mães sem filhos,
nas medalhas e nas dores no peito.
Eu vi Abril nas mãos calejadas
e nos rostos amargos da pátria.
Eu vi Abril no pé descalço
e na pendura de um eléctrico.
Eu vi Abril em Abril de promessas
e um povo inteiro a rastejar de fé em Maio.
Eu vi Abril nas mãos sujas de um operário
e num almoço em marmita requentada.
Eu vi Abril em braçadas de ceifeira
nas planícies se fim do Alentejo.
Eu vi Abril no alto mar com terra à vista
e pescadores sem porto a naufragar.
Eu vi Abril nas madrugadas serenas
e Lisboa adormecida junto ao Tejo, Tejo acima.
Eu vi Abril nas ruas das cidades em pleno inverno
e um país todo ele a tiritar no verão.
Eu vi Abril nas batas brancas dos meninos
tragicamente cantando e rindo sem saber de quê.
Eu vi Abril no medo do medo da palavra
em fechados sussurros nos meios fechados.
Eu vi Abril na voz plangente dos meus cantores
e nas violas nunca mudas que tocavam.
Eu vi Abril em Abril nos meus amigos
as minas e as picadas de terra e sangue.
Eu vi Abril em Abril nos meus amigos
que da distância não voltavam mais.
Eu vi Abril nos aerogramas que chegavam
escritos a sangue e muita dor.
Eu vi Abril nas dores e nos desgostos
dos pais sem filhos, dos órfãos e das viúvas.
Eu vi Abril nos amigos sem amigos
e nos inevitáveis destinos anunciados.
Eu vi Abril num stencil à socapa
passado de mão em mão, clandestino.
Eu vi Abril num disco proibido
ouvido ao ouvido, muito baixo.
Eu vi Abril na palavra passada
com o braço passado sobre o ombro de um amigo.
Eu vi Abril no compromisso,
no acto solidário.
Eu vi Abril no arriscado acto de arriscar,
na coragem, na dúvida, na traição.
Eu vi Abril no amigo que não verga
no abraço forte e fraterno.

Eu vi Abril no meu país
a acontecer todos os dias.


AntónioFMartins

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Ao meu companheiro, o Lobo


Deu-me agora, vejam lá, para dar uma "severa" repreensão por escrito, ao meu tão incondicional como vigoroso amigo...



Ao meu companheiro, o Lobo


 Anda, leva-me a passear contigo, Lobo,
que eu vou tentar não soltar a trela
nem me deixar arrastar por ti
atrás duma qualquer cadela
ou seja lá pelo que for
que à tua força — mais que a minha,
eu possa ceder, vencido ao teu puxar.
Anda, leva-me a passear contigo, Lobo,
vamos os dois como dois da vida airada,
tu sempre a puxar, à frente,
eu, atrás, numa figura desgraçada...



António F. Martins