sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Nada nos teus olhos, Juan Yagüe

Juan Yagüe, o “carniceiro de Badajoz” como ficou conhecido, foi o comandante das tropas nacionalistas-franquistas-fascistas (integrando 750 temíveis legionários marroquinos, sanguinários  e medonhos que ficaram lamentavelmente célebres pelas suas bárbaras atrocidades sobre a população feminina e as crianças) que, no dia 16 de Agosto de 1933, tomaram de assalto a cidade de Badajoz aos republicanos, usando duma violência e desumanidade sem paralelo na história das guerras modernas tendo até, pelos excessos presenciados, impressionado negativamente — pasme-se... — o oficial  superior alemão, enviado pelos nazis como observador naquela frente de guerra...

O que se seguiu foi uma das maiores carnificinas da guerra civil espanhola. Foram executados sumariamente cerca de 4000 cidadãos: militares do exército regular, milícia popular e civis indiscriminadamente detidos, todos “suspeitos” de pertencer ou colaborar com os republicanos.
A esmagadora maioria das execuções foi levada a cabo na praça de touros de Badajoz, em plena arena e nos corredores interiores.

Deixo-vos, a propósito dos 80 anos passados sobre a hedionda data e em homenagem a todas aquelas vitimas da brutalidade fascista, um poema que escrevi:



Nada nos teus olhos, Juan Yagüe


Não, Juan Yagüe
tu nunca soubeste o que sente um homem
quando fita os olhos doutro homem
na ponta da mira duma espingarda,
alinhado ao lado doutros homens
aguardando o disparo assassino do fuzil.

Não, Juan Yagüe
tu nunca soubeste o que sente um homem
que vai morrer e olha a morte de frente
pelo cano estreito duma espingarda
apontada ao peito, ao coração e, quem sabe,
acertando em cheio nas veias da memória.

Não, Juan Yagüe
tu nunca soubeste o que sente um homem
quando traiçoeira, a morte lhe aparece assim,
noite calada, porta a dentro, um homem,
a companheira, os filhos e tudo ali
por dentro do momento em que o destino
e a alma se vão, nos abandonam e já não há lágrimas.
É só metralha, é só dor. É só a morte.

Não, Juan Yagüe
tu nunca soubeste o que sente um homem
quando é fitado no vago e não como se fita um homem:
De frente e no fundo mais fundo dos olhos.
Tu nunca soubeste o que sente um homem
ao pressentir no vento o disparo certeiro,
definitivo, mortal.
Não, Juan Yagüe
tu nunca soubeste o que é um homem alinhado
ao lado doutros homens e em cada um deles
uns olhos vivos de vida e coragem, muita coragem
olhando o bruto, o assassino.

Não, Juan Yagüe
tu nunca soubeste o que sente um homem
quando fita os olhos doutro homem
na ponta da mira duma espingarda.
Tu nunca soubeste nada
do tudo que se sabe num olhar.
Era de noite em Agosto e tu disseste que não viste.
Naquela noite tu não viste nada, Yagüe.
Um cego dos cegos que não vêm
porque não querem ver.

Naquela Praça de touros em Badajoz
era a noite de 16 de Agosto de 1933.
Foi a morte de todas as mortes
que nessa noite ali esteve e ali ficou.
E tu não viste nada?
Não viste, Juan Yagüe as mortes que ordenaste
na ponta dos fuzis de cada um  dos teus soldados,
perfilados, frente aos homens, às mulheres,
frente ao sangue do teu povo?
Não, Yagüe, os teus olhos não viram nada, ali em Badajoz
porque os assassinos não vêm só o olfacto lhes aguça o instinto
e era sangue, só sangue que sentias, não eram os olhos
ou o olhar daquela gente  que os teus olhos nunca viram.
Nunca quiseram ver.

Não, Juan Yagüe
tu nunca soubeste o que sente um homem
quando fita os olhos doutro homem
na ponta da mira duma espingarda.

Era noite. Ficou a noite
naquela Praça de touros em Badajoz.


António F. Martins




terça-feira, 16 de agosto de 2016

Os fascistas não matam gente nas praças de touros ao Domingo, dia santo



(Em memória dos cerca de 4000 mártires republicanos, sumariamente assassinados por fuzilamento na praça de touros de Badajoz, pelas forças nacionalistas-fascistas do general Franco, às mãos do odioso general Juan Yagüe, em 16 de Agosto de 1933, um mês depois do começo da guerra civil espanhola. Nenhuma das vítimas — homens, mulheres, velhos e juvenis foi julgado, sequer ouvido por um tribunal)


Os fascistas não matam gente nas praças de touros
ao Domingo, dia santo


Não era Domingo em Badajoz.

Os fascistas não matam
gente nas praças de touros
ao Domingo, dia santo.
Nem ao domingo
ali se sangram almas.
Mesmo fuziladas.
Tu sabias o que era estar ali
no dia dezasseis de Agosto
de mil novecentos e trinta e três.
Tu sabias, naquela arena,
nos corredores daquela praça
sob as bancadas, sol e sombra
e paredes de caliça e pedra
e uma praça inteira e despida,
sem olés nem flores
só o medonho urro bárbaro
dos bárbaros.

Não era Domingo em Badajoz.

Os fascistas não matam
gente nas praças de touros
ao Domingo, dia santo.
E tu estavas ali, lado a lado,
ombro a ombro,
companheiro ao pé do companheiro,
quem sabe, de mãos dadas
numa transfusão imensa
de suor e tanta coragem,
duma mão para a outra mão
apertadas como que dizendo:
Vê, estamos aqui, unidos,
aqui de pé e cada um
mais que um homem,
mais que a própria liberdade:
a liberdade toda em nós
à espera da metralha!
Vê os nossos peitos moribundos
vê como ardem exposto assim,
abertos ao sol de Agosto
ou, quem sabe, mais logo,
iluminados pelo brilho
esplendoroso e frio do luar
e pelo clarão, rápido e cobarde
das balas assassinas.

Não era Domingo em Badajoz.

Os fascistas não matam
gente nas praças de touros
ao Domingo, dia santo.
Não. Não é aqui o nosso lugar,
não é esta a nossa terra
nem na espúria arena de Badajoz
uma bala assassina matará
em cada um de nós a liberdade.
Neste dia dezasseis de Agosto
de mil novecentos e trinta e três
são outras as nossas trincheiras
e por toda a parte outras arenas,
outras praças, tantas ruas e lugares
e outros os combates por travar.
Nunca  sairemos daqui mortos
porque a razão nunca morre
nem se curva perante a tirania,
que aqui agora é o eterno lugar
dos nossos sonhos todos
derramados, semeados nesta terra
com o perene odor do sangue quente
e da coragem contra a besta.
Nesta arena que renascida um dia
frutificando do sangue, incendiará
esta praça plena de memória
que será, aqui, ali, em toda a parte
uma praça em Badajoz
no mundo inteiro.

Dezasseis de Agosto
de mil novecentos e trinta e três.
Os fascistas não matam
gente nas praças de touros
ao Domingo, dia santo.

Era sábado em Badajoz.



António F. Martins