terça-feira, 26 de abril de 2016

Eu vi Abril acontecer

Eu vi Abril acontecer


Eu vi Abril desabrochar
e vi Abril a florir em Maio.
Eu vi Abril sem cravos
na ponta de uma espingarda.
Eu vi Abril num bairro de lata
no centro de Lisboa.
Eu vi Abril em Abril
a festejar o Abril em Portugal.
Eu vi Abril nos bairros pobres
a lutar contra a fome.
Eu vi Abril na fome
sentado à mesa da fome.
Eu vi Abril e Abril em mim
em cada acorde de viola.
Eu vi Abril chegar num outro Abril
sem cravos, sem palavras.
Eu vi Abril florir na mata
e uma guerra sem saber Abril.
Eu vi Abril numa varina
a apregoar a fome numa cesta.
Eu vi Abril na minha mãe
nuns olhos rasos de água e eu tão longe.
Eu vi Abril em muitas mães
nuns olhos rasos de água e tão longe os filhos.
Eu vi Abril e as mães do meu país
num cais e lenços brancos.
Eu vi Abril nas mães sem filhos,
nas medalhas e nas dores no peito.
Eu vi Abril nas mãos calejadas
e nos rostos amargos da pátria.
Eu vi Abril no pé descalço
e na pendura de um eléctrico.
Eu vi Abril em Abril de promessas
e um povo inteiro a rastejar de fé em Maio.
Eu vi Abril nas mãos sujas de um operário
e num almoço em marmita requentada.
Eu vi Abril em braçadas de ceifeira
nas planícies se fim do Alentejo.
Eu vi Abril no alto mar com terra à vista
e pescadores sem porto a naufragar.
Eu vi Abril nas madrugadas serenas
e Lisboa adormecida junto ao Tejo, Tejo acima.
Eu vi Abril nas ruas das cidades em pleno inverno
e um país todo ele a tiritar no verão.
Eu vi Abril nas batas brancas dos meninos
tragicamente cantando e rindo sem saber de quê.
Eu vi Abril no medo do medo da palavra
em fechados sussurros nos meios fechados.
Eu vi Abril na voz plangente dos meus cantores
e nas violas nunca mudas que tocavam.
Eu vi Abril em Abril nos meus amigos
as minas e as picadas de terra e sangue.
Eu vi Abril em Abril nos meus amigos
que da distância não voltavam mais.
Eu vi Abril nos aerogramas que chegavam
escritos a sangue e muita dor.
Eu vi Abril nas dores e nos desgostos
dos pais sem filhos, dos órfãos e das viúvas.
Eu vi Abril nos amigos sem amigos
e nos inevitáveis destinos anunciados.
Eu vi Abril num stencil à socapa
passado de mão em mão, clandestino.
Eu vi Abril num disco proibido
ouvido ao ouvido, muito baixo.
Eu vi Abril na palavra passada
com o braço passado sobre o ombro de um amigo.
Eu vi Abril no compromisso,
no acto solidário.
Eu vi Abril no arriscado acto de arriscar,
na coragem, na dúvida, na traição.
Eu vi Abril no amigo que não verga
no abraço forte e fraterno.

Eu vi Abril no meu país
a acontecer todos os dias.


AntónioFMartins

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