Eu vi Abril acontecer
Eu vi Abril
desabrochar
e vi Abril a
florir em Maio.
Eu vi Abril sem
cravos
na ponta de uma
espingarda.
Eu vi Abril num
bairro de lata
no centro de
Lisboa.
Eu vi Abril em
Abril
a festejar o
Abril em Portugal.
Eu vi Abril nos
bairros pobres
a lutar contra a
fome.
Eu vi Abril na
fome
sentado à mesa
da fome.
Eu vi Abril e
Abril em mim
em cada acorde
de viola.
Eu vi Abril
chegar num outro Abril
sem cravos, sem
palavras.
Eu vi Abril
florir na mata
e uma guerra sem
saber Abril.
Eu vi Abril numa
varina
a apregoar a
fome numa cesta.
Eu vi Abril na
minha mãe
nuns olhos rasos
de água e eu tão longe.
Eu vi Abril em
muitas mães
nuns olhos rasos
de água e tão longe os filhos.
Eu vi Abril e as
mães do meu país
num cais e
lenços brancos.
Eu vi Abril nas
mães sem filhos,
nas medalhas e
nas dores no peito.
Eu vi Abril nas
mãos calejadas
e nos rostos
amargos da pátria.
Eu vi Abril no
pé descalço
e na pendura de
um eléctrico.
Eu vi Abril em
Abril de promessas
e um povo
inteiro a rastejar de fé em Maio.
Eu vi Abril nas
mãos sujas de um operário
e num almoço em
marmita requentada.
Eu vi Abril em
braçadas de ceifeira
nas planícies se
fim do Alentejo.
Eu vi Abril no
alto mar com terra à vista
e pescadores sem
porto a naufragar.
Eu vi Abril nas
madrugadas serenas
e Lisboa
adormecida junto ao Tejo, Tejo acima.
Eu vi Abril nas
ruas das cidades em pleno inverno
e um país todo
ele a tiritar no verão.
Eu vi Abril nas
batas brancas dos meninos
tragicamente
cantando e rindo sem saber de quê.
Eu vi Abril no
medo do medo da palavra
em fechados
sussurros nos meios fechados.
Eu vi Abril na
voz plangente dos meus cantores
e nas violas
nunca mudas que tocavam.
Eu vi Abril em
Abril nos meus amigos
as minas e as
picadas de terra e sangue.
Eu vi Abril em
Abril nos meus amigos
que da distância
não voltavam mais.
Eu vi Abril nos
aerogramas que chegavam
escritos a
sangue e muita dor.
Eu vi Abril nas
dores e nos desgostos
dos pais sem
filhos, dos órfãos e das viúvas.
Eu vi Abril nos
amigos sem amigos
e nos
inevitáveis destinos anunciados.
Eu vi Abril num
stencil à socapa
passado de mão
em mão, clandestino.
Eu vi Abril num
disco proibido
ouvido ao
ouvido, muito baixo.
Eu vi Abril na
palavra passada
com o braço passado
sobre o ombro de um amigo.
Eu vi Abril no
compromisso,
no acto
solidário.
Eu vi Abril no
arriscado acto de arriscar,
na coragem, na
dúvida, na traição.
Eu vi Abril no
amigo que não verga
no abraço forte
e fraterno.
Eu vi Abril no
meu país
a acontecer todos
os dias.
AntónioFMartins
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