Daquela janela, a minha vida toda
Daquela janela,
de-uma-casa-numas-águas-furtadas
que era a casa
dos meus tios,
cá de cima
eu via o Tejo
e o Tejo todo
marejava, lento
e suave
no brilho
infantil
dos meus olhos
grandes
e encantados.
Daquela janela
eu via o Tejo
e um cacilheiro
na noite,
muitos barcos
reflectindo a
luz
estendida em
ondas
sobre as águas
sempre calmas.
Daquela janela,
cá do cimo
que era para mim
o próprio cimo
de Lisboa,
de Alfama, junto
à Sé
eu via o Tejo
e o Tejo todo
a entrar-me
peito a dentro
inundando, de
mansinho
em ondas
pequeninas
aquela-casa-numas-águas-furtadas
que era a casa
dos meus tios
que seria a casa
dos meus sonhos
e mais que casa
uma janela.
Aquela janela
que, à altura
exacta
de um voo largo
de gaivota
eu via sempre
aberta
sobre Lisboa, a
noite e o Tejo.
Talvez aberta sobre
mim próprio.
Daquela janela,
cá de cima
o meu olhar
voava
(ou seria eu
próprio que voava?)
sobre os
telhados de Alfama
e o rio Tejo
lá em baixo.
E depois
voltava.
Voltava sempre
àquela janela,
àquela-casa-numas-águas-furtadas
que era a casa
dos meus tios,
na rua do Barão,
encostada à Sé
e aos meus
sonhos de menino.
Aos meus sonhos.
Todos os meus
sonhos
que, uma a um,
indelevelmente
iam ficando gravados
em mim.
Ali eu era tudo,
uma gaivota
sobre o céu de Lisboa
que ali era só
meu,
um barco no
Tejo, vela contra o vento
a bolinar marés
e sonhos,
Alfama e as
gentes todas lá em baixo
e uma viela, um
pregão
e uns espantados
olhos de criança
aqui e ali
presos a tudo,
acabando sempre
por voltar
vindos do Tejo,
quase mar
à janela aberta
par em par
naquela-casa-numas-águas-furtadas
que era a casa
dos meus tios.
Um dia, talvez
numa noite,
(num qualquer momento
de um daqueles
dias
em que todos os
momentos
do dia e da
noite se confundem),
debruçado na janela
aberta
dos meus sonhos
distantes
e do que foi
quase o dia do meu último dia.
— Era num
hospital e, provavelmente,
naquela parte de
Lisboa
nem uma gaivota
lá fora voava,
nem uma janela
aberta,
nem perto Alfama
nem perto o Tejo.
Só os sonhos.
Só os sonhos há
muito sonhados da janela
daquela-casa-numas-águas-furtadas
que era a casa
dos meus tios.
E, então, por
trás dos meus olhos
(Talvez ali de novo
eu tivesse olhos de menino),
— agora quase
moribundos
como numa imagem
arrancada, quem sabe,
à força do
desespero
do fundo dos
meus sonhos tão distantes
e da minha
memória perturbada
eu vi que estava
ali à minha frente,
de telhado em
telhado
descendo até ao
rio,
até ao mais
profundo do meu Tejo,
magistral, a
minha vida toda.
A minha vida
toda, como se vista da janela,
daquela-casa-numas-águas-furtadas
que era a casa
dos meus tios.
E ali, comigo,
ajudando-me a subir
de degrau em
degrau
a pequena escada
de madeira
até à janela do
sonho dos meus sonhos,
— trave mestra
de mim mesmo,
estava um menino
de olhos grandes
estendidos pelo
longe, pelo infinito
até ao
deslumbramento
com que tantas
vezes,
daquela janela
eu vira o Tejo
e quase, quase o
mar
e um cacilheiro
na noite
e muitos barcos
reflectindo a luz
estendida em
ondas
sobre as águas
sempre calmas.
Então, nesse
dia, talvez numa noite,
(num qualquer momento
de um daqueles
dias
em que todos os
momentos
do dia e da
noite se confundem),
debruçado na
janela aberta
dos meus sonhos
distantes
e do que foi
quase o dia do meu último dia,
eu fugi.
Eu fugi, penso
que da morte.
Naquele momento,
eu quis.
Naquele momento
foi o momento.
E eu voei então,
de novo
daquela janela,
lá em cima,
talvez na asa ou
no dorso
de uma gaivota,
talvez de uma
gaivota
que um dia tenha
passado por mim,
em voo largo,
junto àquela janela
aí me deixando
agora, seguro,
abrigado nos
meus sonhos,
e a começar de
novo um novo sonho
naquela-casa-numas-águas-furtadas
que era a casa
dos meus tios.
Não te feches
nunca, janela.
Nunca te feches
até que um dia,
numa noite, quem
sabe, de lua cheia
sobre os
telhados de Alfama e do Tejo,
uma gaivota
pousando no teu parapeito
te diga que eu
não voo mais
que eu não
voltarei mais
à-casa-numas-águas-furtadas
que era a casa
dos meus tios.
AntónioFMartins