segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Nas Portas do sol (Escrevendo e desenhando por Lisboa)

Nas Portas do sol
(Escrevendo e desenhando por Lisboa)



Vê, amor, 
vê como o sol 
ilumina a nossa cidade, 
aqui, 
entrando pleno e radioso 
as Portas do Sol, 
as portas da cidade 
abertas de par em par 
sobre Alfama, 
o Tejo e toda a distância 
que tu não vês. 

Vê, amor, 
como o sol quase incendeia 
a nossa Lisboa. 
Abraça-me agora 
e estende o teu olhar 
até ao rio, 
e, sobre os telhados 
curvados pelo tempo 
leva-me 
num voo de gaivota, 
sereno, lento, 
arrastado pelo vento 
que, aqui, quase sempre 
sopra do lado do coração. 

Deixa que o eléctrico 
que nos trouxe, 
rumo ao alto da cidade 
parta sem nós. 

Abraça-me, amor, 
vamos ficando 
até que se vá o sol 
e, quedando-se o dia e a luz, 
os nossos olhos não vejam 
para além deste amor 
que há entre nós. 

Vê, amor, 
vê como o sol 
ilumina a nossa cidade, 
aqui.



AntónioFMartins




No Cais da Ribeira é namorar (Escrevendo e desenhando pelo Porto)

No Cais da Ribeira é namorar
(Escrevendo e desenhando pelo Porto)



Passearemos por aqui, 
de mão dada, 
caminhando 
vagarosamente 
ao longo 
do Cais da Ribeira 
que, a cada passo, 
se transforma 
para nós 
num cais de paixão 
e encantamentos. 

Sem ninguém 
a observar-nos, 
trocaremos um beijo 
que aqui 
já saberá a mar 
e a sal 
e apertaremos 
mais as nossas mãos 
quando uma gaivota 
em voo raso 
nos acordar 
o estar aqui. 

Um Rabelo, 
a poucos metros, 
de âncora no fundo, 
balança 
irrequieto 
ao sabor 
da pequena vaga.

Ou estará só 
a acenar para nós?

Vamos, meu amor, 
aperta mais a minha mão, 
vamos.


AntónioFMartins

sábado, 26 de setembro de 2015

Do Tejo vejo as Amoreiras (Escrevendo e desenhando por Lisboa)

Do Tejo vejo as Amoreiras
(Escrevendo e desenhando por Lisboa)


Já vai alta a maré, 
galopando cíclica e veloz, Tejo a cima, 
passando os cais de Lisboa um a um, 
até se espraiar pleno na lezíria, 
Ribatejo a dentro. 

Mas eu não vou.

Desta vez não vou acompanhar-te, Tejo. 
Fico por aqui, de frente para uma cidade 
que lá no cimo do olhar não é a minha cidade.

Nasces do rio, Lisboa, uma cidade perfeita, 
arrumada, mesmo que na desordem ordenada 
do teu luminoso e desalinhado casario 
e, colina acima não se te vê defeito, só virtude. 

Os espaços certos dentro dos espaços certos, 
os vazios, o equilíbrio perfeito que, há muito, 
os mestres construtores da cidade, 
como ninguém te souberam dar. 

Agora, lá no topo da colina 
que é o bairro das Amoreiras, 
o tempo (e um tal Taveira, rascunhador 
de um abominável reino dos abomináveis patos bravos) 
fez-te espigar, saliente e agreste como erva daninha 
no cimo de um bonito prado.

Vou ficar aqui, Lisboa, olhando para ti 
e, como uma criança, fazer de conta que não vejo,
que não quero ver, lá em cima aquelas coisas.


AntónioFMartins


Aqui nunca estou longe (Escrevendo e desenhando pelo Porto)

Aqui nunca estou longe
(Escrevendo e desenhando pelo Porto)


Há sempre um rio 
que me chama 
e uma cidade 
junto a um rio 
que me encanta.

Não é a minha Lisboa 
mas aqui 
eu vejo Tejos 
a correr no Douro 
e as mesmas gaivotas 
em serenos voos largos, 
o mesmo hálito fresco a sal 
e a mar 
e as mesmas 
vielas estreitas 
e sombrias, 
as mesmas gentes. 

As mesmas gentes.

Vou sentar-me por aqui, 
numa qualquer 
radiante esplanada 
olhando o Douro 
e saborear 
um cimbalino 
no sentir distante 
de uma bica
junto ao Tejo.

Aqui eu quase sinto 
que não estou longe 
de Lisboa.



AntónioFMartins



Os primeiros frios (Escrevendo e desenhando por Lisboa)

Os primeiros frios
(Escrevendo e desenhando por Lisboa)


Deixa-me arranjar-te os cabelos 
que se vão desalinhando com o vento 
e, mesmo que estejam já começando 
a soprar as frias aragens do Outono, 
não vamos baixar a janela, meu amor. 

Aqui é Alfama, o coração de Lisboa 
que nos aquece as mãos, o peito e a alma. 
E o coração. 
Não, não vamos baixar a janela meu amor, 
é a cidade toda que entra, nos penetra o olhar 
e se senta inteira ao nosso lado. 

Aqui é tudo, no eléctrico de Lisboa, 
por Lisboa subindo até ao cimo de Lisboa. 

Não, não vamos baixar a janela, meu amor. 
São só os primeiros frios do Outono, 
é Lisboa e o eléctrico, meu amor.



AntónioFMartins



Segues-me os passos (Poemas acerca de tudo)

Segues-me os passos
(Poemas acerca de tudo)


Segues-me os passos na noite
e eu sinto os lírios,
os lábios 
e o calor.

Sufoca-me os nós dos dedos,
aperta-me contra o vento
e eu sonho-te, 
sorvo-te.

Segues-me o riso e cantas,
andas por mim.
Entras e eu espero.
Faço-me.

As nossas camas
de silêncios
estão deitadas no silêncio.
Dormimos aqui alguma vez?

Anda,
segue-me os passos.

Há tanto tempo
que não sei de ti.



AntónioFMartins

Desalentos (Poemas acerca de tudo)

Desalentos
(Poemas acerca de tudo)


Se é vingança de Deus
não conseguir eu amor
de quem não tenha
já alguém gostado
tire-me o Diabo a vida
e acabe com meu sofrimento
de só gostar
de quem já é amado.



AntónioFMartins

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Um menino como um filho meu. Ao Haylan Kurdi, Sírio, 3 anos, menino. (Poemas acerca de tudo)

Um menino como um filho meu
(Ao Haylan, menino)


Um menino
caiu ao mar,
como um filho meu,
caiu ao mar 
e deu à costa.

Um menino
caiu ao mar,
vestido de menino,
como um filho meu
e deu à costa.

Um menino
caiu ao mar
com botas ortopédicas,
como um filho meu,
caiu ao mar
e deu à costa.

Um menino
caiu ao mar,
menino e morto,
como um filho meu,
caiu ao mar
e deu à costa.

Um menino
caiu ao mar
como um filho meu
caiu ao mar
e o mar chorando
em espuma branca
deu-o à costa.

Um menino
caiu ao mar
vestido de menino
e botas ortopédicas.
E como um filho meu
carregado de vergonha
carrego-o às costas.

como um filho meu.


AntónioFMartins

sábado, 19 de setembro de 2015

Santo António (Poemas acerca de tudo)

Santo António
(Poemas acerca de tudo)


Se me vires
um dia,
perdido
pelas vielas 
de Alfama,
Santo António
dá-me a mão
e um lugar
na tua casa,
dentro do teu
coração,
que em Lisboa
eu não encontro
um abraço 
como o teu.

Encontro-te,
logo,
na procissão.




AntónioFMartins
13 de Junho de 2015

Palavras (Poemas acerca de tudo)

Palavras
(Poemas acerca de tudo)


E então
eles ficaram
longas horas
perdidos em palavras
inúteis.

Falavam 
da autonomia da gestão
e articulavam palavras
que nem eles
próprios
conheciam bem.

Fala-me amigo
da autogestão
e de todas
aquelas coisas
que tu sabes.

Conta-me.

O não estar aqui
tem os espaços
próprios
que só o sono tem.

É meio alimento
o sono,
dizem.
Por quê
perigar-lhe 
a digestão?

Façamos pois
a auto-digestão
do alimento.

E então
eles ficaram
longas horas
perdidos em palavras

inúteis.


AntónioFMartins

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Daquela janela, a minha vida toda (Poemas acerca de tudo)


Daquela janela, a minha vida toda


Daquela janela,
de-uma-casa-numas-águas-furtadas
que era a casa dos meus tios,
cá de cima
eu via o Tejo
e o Tejo todo
marejava, lento e suave
no brilho infantil
dos meus olhos grandes
e encantados.
Daquela janela
eu via o Tejo
e um cacilheiro na noite,
muitos barcos
reflectindo a luz
estendida em ondas
sobre as águas
sempre calmas.

Daquela janela,
cá do cimo
que era para mim
o próprio cimo de Lisboa,
de Alfama, junto à Sé
eu via o Tejo
e o Tejo todo
a entrar-me peito a dentro
inundando, de mansinho
em ondas pequeninas
aquela-casa-numas-águas-furtadas
que era a casa dos meus tios
que seria a casa dos meus sonhos
e mais que casa uma janela.
Aquela janela
que, à altura exacta
de um voo largo de gaivota
eu via sempre aberta
sobre Lisboa, a noite e o Tejo.
Talvez aberta sobre mim próprio.

Daquela janela,
cá de cima
o meu olhar voava
(ou seria eu próprio que voava?)
sobre os telhados de Alfama
e o rio Tejo
lá em baixo.
E depois voltava.
Voltava sempre àquela janela,
àquela-casa-numas-águas-furtadas
que era a casa dos meus tios,
na rua do Barão, encostada à Sé
e aos meus sonhos de menino.
Aos meus sonhos.
Todos os meus sonhos
que, uma a um, indelevelmente
iam ficando gravados em mim.
Ali eu era tudo,
uma gaivota sobre o céu de Lisboa
que ali era só meu,
um barco no Tejo, vela contra o vento
a bolinar marés e sonhos,
Alfama e as gentes todas lá em baixo
e uma viela, um pregão
e uns espantados olhos de criança
aqui e ali presos a tudo,
acabando sempre por voltar
vindos do Tejo, quase mar
à janela aberta par em par
naquela-casa-numas-águas-furtadas
que era a casa dos meus tios.

Um dia, talvez numa noite,
(num qualquer momento
de um daqueles dias
em que todos os momentos
do dia e da noite se confundem),
debruçado na janela aberta
dos meus sonhos distantes
e do que foi quase o dia do meu último dia.
— Era num hospital e, provavelmente,
naquela parte de Lisboa
nem uma gaivota lá fora voava,
nem uma janela aberta,
nem perto Alfama nem perto o Tejo.
Só os sonhos.
Só os sonhos há muito sonhados da janela
daquela-casa-numas-águas-furtadas
que era a casa dos meus tios.

E, então, por trás dos meus olhos
(Talvez ali de novo eu tivesse olhos de menino),
— agora quase moribundos
como numa imagem arrancada, quem sabe,
à força do desespero
do fundo dos meus sonhos tão distantes 
e da minha memória perturbada
eu vi que estava ali à minha frente,
de telhado em telhado
descendo até ao rio,
até ao mais profundo do meu Tejo,
magistral, a minha vida toda.
A minha vida toda, como se vista da janela,
daquela-casa-numas-águas-furtadas
que era a casa dos meus tios.

E ali, comigo, ajudando-me a subir
de degrau em degrau
a pequena escada de madeira
até à janela do sonho dos meus sonhos,
— trave mestra de mim mesmo,
estava um menino de olhos grandes
estendidos pelo longe, pelo infinito
até ao deslumbramento
com que tantas vezes,
daquela janela eu vira o Tejo
e quase, quase o mar
e um cacilheiro na noite
e muitos barcos reflectindo a luz
estendida em ondas
sobre as águas sempre calmas.

Então, nesse dia, talvez numa noite,
(num qualquer momento
de um daqueles dias
em que todos os momentos
do dia e da noite se confundem),
debruçado na janela aberta
dos meus sonhos distantes
e do que foi quase o dia do meu último dia,
eu fugi.

Eu fugi, penso que da morte.

Naquele momento, eu quis.
Naquele momento foi o momento.

E eu voei então, de novo
daquela janela, lá em cima,
talvez na asa ou no dorso
de uma gaivota,
talvez de uma gaivota
que um dia tenha passado por mim,
em voo largo, junto àquela janela
aí me deixando agora, seguro,
abrigado nos meus sonhos,
e a começar de novo um novo sonho
naquela-casa-numas-águas-furtadas
que era a casa dos meus tios.

Não te feches nunca, janela.
Nunca te feches até que um dia,
numa noite, quem sabe, de lua cheia
sobre os telhados de Alfama e do Tejo,
uma gaivota pousando no teu parapeito
te diga que eu não voo mais
que eu não voltarei mais
à-casa-numas-águas-furtadas
que era a casa dos meus tios.



AntónioFMartins