terça-feira, 1 de setembro de 2015

Daquela janela, a minha vida toda (Poemas acerca de tudo)


Daquela janela, a minha vida toda


Daquela janela,
de-uma-casa-numas-águas-furtadas
que era a casa dos meus tios,
cá de cima
eu via o Tejo
e o Tejo todo
marejava, lento e suave
no brilho infantil
dos meus olhos grandes
e encantados.
Daquela janela
eu via o Tejo
e um cacilheiro na noite,
muitos barcos
reflectindo a luz
estendida em ondas
sobre as águas
sempre calmas.

Daquela janela,
cá do cimo
que era para mim
o próprio cimo de Lisboa,
de Alfama, junto à Sé
eu via o Tejo
e o Tejo todo
a entrar-me peito a dentro
inundando, de mansinho
em ondas pequeninas
aquela-casa-numas-águas-furtadas
que era a casa dos meus tios
que seria a casa dos meus sonhos
e mais que casa uma janela.
Aquela janela
que, à altura exacta
de um voo largo de gaivota
eu via sempre aberta
sobre Lisboa, a noite e o Tejo.
Talvez aberta sobre mim próprio.

Daquela janela,
cá de cima
o meu olhar voava
(ou seria eu próprio que voava?)
sobre os telhados de Alfama
e o rio Tejo
lá em baixo.
E depois voltava.
Voltava sempre àquela janela,
àquela-casa-numas-águas-furtadas
que era a casa dos meus tios,
na rua do Barão, encostada à Sé
e aos meus sonhos de menino.
Aos meus sonhos.
Todos os meus sonhos
que, uma a um, indelevelmente
iam ficando gravados em mim.
Ali eu era tudo,
uma gaivota sobre o céu de Lisboa
que ali era só meu,
um barco no Tejo, vela contra o vento
a bolinar marés e sonhos,
Alfama e as gentes todas lá em baixo
e uma viela, um pregão
e uns espantados olhos de criança
aqui e ali presos a tudo,
acabando sempre por voltar
vindos do Tejo, quase mar
à janela aberta par em par
naquela-casa-numas-águas-furtadas
que era a casa dos meus tios.

Um dia, talvez numa noite,
(num qualquer momento
de um daqueles dias
em que todos os momentos
do dia e da noite se confundem),
debruçado na janela aberta
dos meus sonhos distantes
e do que foi quase o dia do meu último dia.
— Era num hospital e, provavelmente,
naquela parte de Lisboa
nem uma gaivota lá fora voava,
nem uma janela aberta,
nem perto Alfama nem perto o Tejo.
Só os sonhos.
Só os sonhos há muito sonhados da janela
daquela-casa-numas-águas-furtadas
que era a casa dos meus tios.

E, então, por trás dos meus olhos
(Talvez ali de novo eu tivesse olhos de menino),
— agora quase moribundos
como numa imagem arrancada, quem sabe,
à força do desespero
do fundo dos meus sonhos tão distantes 
e da minha memória perturbada
eu vi que estava ali à minha frente,
de telhado em telhado
descendo até ao rio,
até ao mais profundo do meu Tejo,
magistral, a minha vida toda.
A minha vida toda, como se vista da janela,
daquela-casa-numas-águas-furtadas
que era a casa dos meus tios.

E ali, comigo, ajudando-me a subir
de degrau em degrau
a pequena escada de madeira
até à janela do sonho dos meus sonhos,
— trave mestra de mim mesmo,
estava um menino de olhos grandes
estendidos pelo longe, pelo infinito
até ao deslumbramento
com que tantas vezes,
daquela janela eu vira o Tejo
e quase, quase o mar
e um cacilheiro na noite
e muitos barcos reflectindo a luz
estendida em ondas
sobre as águas sempre calmas.

Então, nesse dia, talvez numa noite,
(num qualquer momento
de um daqueles dias
em que todos os momentos
do dia e da noite se confundem),
debruçado na janela aberta
dos meus sonhos distantes
e do que foi quase o dia do meu último dia,
eu fugi.

Eu fugi, penso que da morte.

Naquele momento, eu quis.
Naquele momento foi o momento.

E eu voei então, de novo
daquela janela, lá em cima,
talvez na asa ou no dorso
de uma gaivota,
talvez de uma gaivota
que um dia tenha passado por mim,
em voo largo, junto àquela janela
aí me deixando agora, seguro,
abrigado nos meus sonhos,
e a começar de novo um novo sonho
naquela-casa-numas-águas-furtadas
que era a casa dos meus tios.

Não te feches nunca, janela.
Nunca te feches até que um dia,
numa noite, quem sabe, de lua cheia
sobre os telhados de Alfama e do Tejo,
uma gaivota pousando no teu parapeito
te diga que eu não voo mais
que eu não voltarei mais
à-casa-numas-águas-furtadas
que era a casa dos meus tios.



AntónioFMartins


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