segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Já não somos sequer silêncio (poemas da guerra)

Já não somos sequer silêncio


 Oito mil oitocentos e trinta e um.
Mortos.
Todos mortos.
Catorze mil.
Deficientes.
Todos deficientes.
Cento e quarenta mil.
Neuróticos de guerra.
Todos neuróticos de guerra.

E tu não dizes nada,
não te indignas
e em silêncio calas a revolta?
Oito mil oitocentas e trinta e uma
vidas acabadas no começo da vida
e tu não dizes nada,
não te indignas
e em silêncio calas a revolta?
Catorze mil vidas em pedaços
sem pedaços de si, dos seus corpos
e tu não dizes nada,
não te indignas
e em silêncio calas a revolta?
Cento e quarenta mil almas
alma a alma com a alma perdida,
um vago olhar no olhar e uma guerra
que neles nunca acabou
e tu não dizes nada,
não te indignas
e em silêncio calas a revolta?

Não, camarada, não foi esta a guerra
em que lutamos
nem foi esta a guerra em que perdemos
a vida, o nome e a alma. A inocência.
Por nada!
Não, camarada, não foi esta a história
que a História quis para nós, soldados.
Não camarada, nenhum de nós ali morreu,
nenhum de nós ali caiu em pedaços,
nenhum de nós aqui continua entre minas,
em permanentes emboscadas,
dormindo acordado pelas longas noites
ora frias ora quentes da memória.

E agora aqui, camaradas, é como se nunca  
tivéssemos estado lá naquela guerra,
agora aqui é como se ninguém nos visse,
como se ninguém quisesse reparar em nós,
invisíveis, como sombras perdidos
nas sombras mais sombrias da História,
assim como se a pátria, um dia
nunca nos tivesse dito: Vai!

Oito mil oitocentos e trinta e um.
Mortos.
Todos mortos.
Catorze mil.
Deficientes.
Todos deficientes.
Cento e quarenta mil.
Neuróticos de guerra.
Todos neuróticos de guerra.
E tu não dizes nada,
não te indignas
e em silêncio calas a revolta.


António F. Martins




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