domingo, 28 de fevereiro de 2016

Marés de mim (Poemas do mar)

Marés de mim
(Poemas do mar)


Eu trago comigo as marés todas
chegadas do fim do mundo,
aqui espraiadas, vaga a vaga, 
na secura triste dos meus olhos.
As continentais marés vindas do longe,
das Áfricas, das Índias, dos Brasis,
das longínquas brisas oceânicas
sopradas em cada vela que, brancas,
de todos os mares e ventos 
aqui me chegam, carregando nelas
mares e continentes, o mundo todo,
o mundo achado e mais que o achado,
o mundo todo por achar.
Aqui, na areia das praias
e dos destinos que desvendo,
ou num promontório, de pé,
com o mar todo à minha frente
eu sou Portugal todo a navegar,
de velas cheias dos ventos da memória.

Eu trago comigo as marés todas
chegadas do fim do mundo.



António F. Martins

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Da guerra, da memória (Poemas da guerra)

Da guerra, da memória
(Poemas da guerra)


É isso.
Todos os dias, à noite, quase sempre antes do sono
(quando ele vem)
tentamos apagar as memórias da memória
que em cada olhar, no escuro silêncio mais se avivam,
mais se recordam. Mais e mais e mais.

Já não é a guerra, aquela onde se morre assim
de um tiro ou de uma mina, na distância e no perto da picada,
na vida e na morte emboscadas a cada palmo,
atrás de cada árvore ou ao sol duro e rente da savana.
Já não é aqui a guerra, é um quarto e uma cama
e, talvez, a nossa mãe à cabeceira, aqui na nossa terra.

É isso.
Todos os dias, à noite, quase sempre antes do sono
(quando ele vem)
tentamos apagar as memórias da memória
e então, tantas vezes  a luz explode-nos nos olhos apagados
e, rasgando o escuro e o silêncio, a dor volta
e, então, o corpo todo alaga-se em suor que como sangue
nos percorre, quente, o corpo todo.

Já não é a guerra. Eu sei.
Mas quantos de nós, arrastando diariamente
este monstro que não se nos descrava das memórias,
dia a dia, noite a noite, sonho a sonho,
continuamos como se verdadeiramente
nunca dela houvéssemos saído,
tantas vezes sem saber se dela sairemos algum dia
ou se numa qualquer noite, quem sabe,
numa noite em que não chegue nunca
nem o sono nem o sonho, só a paz,
e então acabe a guerra.

É isso.
Todos os dias, à noite, quase sempre antes do sono
(quando ele vem)
tentamos apagar as memórias da memória.

E, às vezes, é como se lá estivéssemos.
Outra vez.



António F. Martins

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Bastava-te ser barco (Poemas do mar)

Bastava-te ser barco
(Poemas do mar)



Bastava-te ser barco
um remo, uma vela
um Tejo perdido no Douro
mas foste o mar. Todo.

Bastava-te ser margem
ser foz, ser costa
mas foste o mundo.
E o mar. Todo.

Bastava-te ser terra,
planície, montanha, um olival
mas foste a descoberta, o Bojador.
E o mar. Todo.

Bastava-te ser gente,
pedra, trigo, o norte e o sul
mas foste o pinho e a nau.
E o mar. Todo.

Bastava-te ser chão
ser só pátria, ser só Europa
mas foste Portugal.
E o mar. Todo.

Bastava-te ser barco.


António F. Martins

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Estrela no mar (À Samira e à Viviane)


Acerca do meu terrível incómodo com a estranha forma de morte destas duas crianças.



Estrela no mar
(À Samira e à Viviane)


Eu vou buscar-te, menina, ao rio,
quase no fundo atlântico
e podes trazer, fechada na mão
aquela estrela do mar
que no mar encontraste e em ti ficou
e, contigo, certamente,
ali quis morrer também.

Tu és agora estrela no mar.


António F. Martins

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Coisas de poetas (Poemas acerca de tudo)

Coisas de poetas
(Poemas acerca de tudo)



Eu sou o poeta adormecido
sobre os pesadelos da rima.

Eu não rimo. Eu detesto a rima
e a quadra quadrada!

Eu sou o poeta a acordar a palavra
da cama das letras, a puxar-lhe os lençóis
e a trazê-la despida para a rua.

E aí, abraço-lhe a sílaba com força,
e deixo-a partir, às vezes sem rumo,
mas sempre sem rima.


 António F. Martins

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Lisboa do Terreiro da Praça (Poemas acerca de tudo)

Lisboa do Terreiro da Praça
(Poemas acerca de tudo)


Do Terreiro da Praça
ao Comércio do Paço
passo por aqui e só vejo
que é tudo passado,
quase que só resta o Tejo
e a paisagem toda trocada,
ainda vejo o cavalo e o José
e resiste o Martinho da Arcada.
Do resto, nada!


 António F. Martins