sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Da guerra, da memória (Poemas da guerra)

Da guerra, da memória
(Poemas da guerra)


É isso.
Todos os dias, à noite, quase sempre antes do sono
(quando ele vem)
tentamos apagar as memórias da memória
que em cada olhar, no escuro silêncio mais se avivam,
mais se recordam. Mais e mais e mais.

Já não é a guerra, aquela onde se morre assim
de um tiro ou de uma mina, na distância e no perto da picada,
na vida e na morte emboscadas a cada palmo,
atrás de cada árvore ou ao sol duro e rente da savana.
Já não é aqui a guerra, é um quarto e uma cama
e, talvez, a nossa mãe à cabeceira, aqui na nossa terra.

É isso.
Todos os dias, à noite, quase sempre antes do sono
(quando ele vem)
tentamos apagar as memórias da memória
e então, tantas vezes  a luz explode-nos nos olhos apagados
e, rasgando o escuro e o silêncio, a dor volta
e, então, o corpo todo alaga-se em suor que como sangue
nos percorre, quente, o corpo todo.

Já não é a guerra. Eu sei.
Mas quantos de nós, arrastando diariamente
este monstro que não se nos descrava das memórias,
dia a dia, noite a noite, sonho a sonho,
continuamos como se verdadeiramente
nunca dela houvéssemos saído,
tantas vezes sem saber se dela sairemos algum dia
ou se numa qualquer noite, quem sabe,
numa noite em que não chegue nunca
nem o sono nem o sonho, só a paz,
e então acabe a guerra.

É isso.
Todos os dias, à noite, quase sempre antes do sono
(quando ele vem)
tentamos apagar as memórias da memória.

E, às vezes, é como se lá estivéssemos.
Outra vez.



António F. Martins

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