domingo, 14 de fevereiro de 2016

Deixa que te chame meu filho (Poemas acerca de tudo)

Hoje vi uma das imagens que, a par com a de Aylan Kurdi (o menino sírio, de 2 anos morto na praia), desde sempre, mais me emocionaram. E eu não sou novo. Há milhões de imagens impressionantes que “falam” da guerra, de catástrofes imensas e dramas plangentes, eu sei. Eu sei e vi-as ao longo da minha vida toda. (E eu fiz a guerra). Mas esta que hoje aqui vos mostro, foi um dos maiores murros no estômago da consciência que já levei (e não foram poucos…) em toda a minha vida. Vi nela, se calhar o que mais ninguém verá, não sei. Mas eu vi ali tudo o que eu sou como homem, como cidadão, e, sobretudo, como pai. Provavelmente, ver-me ali como pai foi mesmo o que mais senti e me doeu da força bruta do tal murro. Acho mesmo que foi isso. Exagero piegas? Só exagero? 
Não resisti e escrevi, quase compulsivamente, este poema que aqui vos deixo. 




Deixa que te chame meu filho
(Poemas acerca de tudo)

Deixa, menino, que te chame meu filho. 
Que me deite ao teu lado, 
de cabeça encostada à tua, 
sobre uma qualquer pedra 
que sobre das pedras da tua cama. 

Deixa-me dar-te um beijo, 
terno e suave, 
afagar-te o rosto e, depois, ficar só a olhar para ti 
como quem olha para dentro do mundo. 
Como quem olha em ti, assim adormecido, 
um menino a ser ali, mais que o mundo; 
O universo todo! 
É que só uma alma imaculada
de menino como tu, 
pode adormecer assim, tão serena, 
sobre a dureza rude e fria 
das pedras da tua cama, do teu chão.
Ou será maior que a dureza rude e fria 
das pedras da tua cama, do teu chão, 
a dureza da vida, quando acordas 
e, acordado, tudo é guerra e morte e fome e pedra, 
só pedra, cama e chão, meu filho?

Não te conheço e, meus Deus, 
como fiquei a amar-te agora que te vi, 
assim deitado, tão sereno, 
tão bonito como um filho meu. 
Como poderei esquecer-te, menino, 
deitado sobre as pedras 
das pedras da tua cama, do teu chão? 
Como poderei esquecer 
— agora que te conheci assim dormindo— 
as vezes que ternamente aconcheguei 
os lençóis macios da cama macia dos meus filhos 
e lhes beijei, serenos, o rosto, o sono e os sonhos? 
Como poderei agora continuar serenamente
por dentro dos meus sonhos agitados, 
pensando em ti, adormecido sobre a dureza rude e fria 
das pedras da tua cama, do teu chão? 
Como poderá agora um pai?
Como poderá?

Um beijo pleno de ternura e tanta revolta, 
meu filho agora.


António F. Martins

1 comentário:

alexandra disse...

Absolutamente comovente... adorei!