domingo, 27 de março de 2016

Passos em volta dum coelho que não é da Páscoa

Uma coisa meio poema, meio não sei bem o quê, mas, porque estamos na Santa quadra pascal, quis que fosse acerca dum coelho. Não um coelhinho qualquer, claro. Um coelho coelho.



Passos em volta dum coelho que não é da Páscoa
(Nem de coisa nenhuma que valha ou que se veja)


Já nem me lembrava de ti, coelho,
não fora a Páscoa, os Passos Pascais
e o sabor a chocolate amargo que nos deixaste
na boca, nos bolsos e na alma,
a cada passo dos passos, coelho,
que nos obrigaste a dar atrás.

Já nem me lembrava de ti, coelho,
não fora os passos que ainda ouço, mesmo distantes
e me lembram o cof-cof enrolado nas mentiras
que a cada passo dos teus passos, coelho,
nos vendias embrulhadas no papel pardo, não de prata,
o chocolate mais negro e mais amargo.
Tão negro e tão amargo como a vida que nos deste.

Agora, estes dias pascais, passo-os, coelho, a tentar esquecer-me de ti.
Da tua doçura tão amarga.
É que nesta Páscoa quero esquecer-me de vez
dos miseráveis passos que como Sísifos
nos fizeste dar acima e abaixo, sempre à tua volta,
amarrado aos teus malvados passos,  coelho.



António F. Martins

segunda-feira, 21 de março de 2016

Um poeta sorriu (Poemas acerca de tudo)


Neste Dia Mundial da Poesia, um modestíssimo contributo e um abraço para todos os poetas do meu país



Um poeta sorriu
(Poemas acerca de tudo)


Um poeta sorriu
do lado de dentro da noite
e passou na cidade
a ensaiar a rima.

O meu lápis partiu-se
a ensinar-lhe os passos
e o tempo.

Um poeta, abraçado à rima
quebrou os minutos um a um
e levou o tempo todo
a construir o tempo exacto.

Eu encontro sempre na cidade
uma cidade que ninguém descobre.

Um poeta entreabriu a porta
e agarrou-se ao sol
do outro lado
e merendou de hora em hora
as vinte e quatro.

Eu tenho um relógio inexacto
e tanto tempo que nem sei.
Acordo sempre na cidade.

Um poeta partiu-se ao meio
e acordou uma cidade de manhã
sem sobressaltos.
Acordou a rima.

Eu levo o tempo todo.
Eu procuro.
Não sei da capa do meu livro.

Um poeta mergulhou na noite
abraçado à vida
e foi ao fundo da cidade
a procurar.
Talvez a ensaiar a rima.

Eu não passo de hoje, também.
Não conheço esta cidade.

Um poeta sorriu.


António F. Martins


sábado, 19 de março de 2016

Um HOMEM sobreviveu em Auschwitz (Poemas acerca de tudo)


Neste dia do Pai, um poema que dedico ao Ivo e ao David, filhos queridíssimos e pequenos companheiros das nossas peregrinações familiares pelos campos do terror, lá longe. Com um beijo, que sabemos, eu e a vossa mãe, vos ficará, indelével como legado depositado na orientação que vos demos e que, certamente, ireis dar às vossas vidas e no entendimento que dela, acerca do verdadeiro significado de ser HOMEM sempre fareis. Um beijo do fundo da memória na vossa memória que é o bem mais precioso que vos deixamos e o mais digno e pesado lastro que um HOMEM pode ter.
Transmitam aos vossos filhos e aos filhos dos vossos filhos: Que nunca mais!


Um HOMEM sobreviveu em Auschwitz


 Um HOMEM sobreviveu em Auschwitz
porque lhe mataram a amada mulher,
os queridíssimos filhos, os saudosos pais,
os irmãos, um amigo e outro e outro e outro.

Um HOMEM sobreviveu em Auschwitz
morrendo acordado num sono profundo,
numa caserna de madeira, frio e morte,
como que naufragado num oceano de desgosto.

Um HOMEM perguntou-se em Auschwitz:
O quê é aqui?
O que faço aqui ?
Porquê?
Porquê?

Deveria um HOMEM, cada HOMEM, ter o seu Auschwitz
e sobreviver?

Um HOMEM sobreviveu em Auschwitz
porque lhe mataram a própria raiz.

Um HOMEM morreu, sobrevivendo em Auschwitz.

Um HOMEM, estando, nunca esteve em Auschwitz.

Que sabem, vocês, os que nunca estiveram em
em Auschwitz?

Nenhum Homem sobreviveu em Auschwitz.


António F. Martins


terça-feira, 15 de março de 2016

Balada do mar Tirreno (Poemas do mar)

Balada do mar Tirreno
(Poemas do mar)



Perguntas-me, sereia:
Serei a sereia mais bonita
entre as sereias, meu amor?

Mas eu não te ouço
e não respondo ao encanto do teu canto
e resisto amarrado
aos mastros fortes dos destinos.

E tu perguntas-me de novo:
Serei a sereia mais bonita
entre as sereias, meu amor?

E eu que não sei o que te diga
porque não quero dizer o que queria,
nada te digo
e amarro-me mais aos mastros fortes
como se não quisesse abraçar-me a ti.

E então eu peço-te que não,
que não me chames mais,
que me deixes partir,
voltar ao Tejo e à minha mãe
e invoco Achelous e Terpsícore
e os meus ouvidos que não ouvem
e o meu corpo amarrado
aos mastros fortes do destino.

E do teu canto tão perdido já no vento
e no longe da distância, eu já não sei se fiquei,
se parti, onde estou, se é o mar, se é o vento,
se é a ti que sem ouvir eu ouço ainda:

Serei a sereia mais bonita
entre as sereias, meu amor?

Diz-me que sim
e eu serei a sereia mais feliz.


António F. Martins

Imagem: Mermaid swimming with a child de Amelia Bauerle)