domingo, 1 de maio de 2016

Dos Açores à guerra


Em Abril de 1973 era a guerra e eu partia para Moçambique com a minha companhia formada nos Açores. Nunca irei saber se os soldados açorianos foram ou não os melhores combatentes daquela maldita guerra. Mas há duas coisas que eu sei: foram valentes como os melhores e dos que foram, muitos, mesmo muitos não voltaram. Como homens — que é o que verdadeiramente mais me interessa, foram, lá longe, no meio do mato e do nada do norte do Niassa, exemplares e de exemplar e invulgar amor às suas terras, ao seu mar e às suas gentes. Pescadores e lavradores quase todos. É um abraço forte o que aqui lhes deixo.





Dos Açores à guerra


Eu trago, companheiros,
nove ilhas cravadas no meu peito
e a saudade toda, a desfazer-se
em sonhos de alva espuma
contra a rocha firme do meu pensamento
erguido do fundo do Atlântico,
do mais fundo do Atlântico
no meio do Atlântico.

Não trago nomes de amigos,
dos amores, de pai ou mãe
gravados no meu peito,
nem trago a terra verde ou o mar azul
na boca de um vulcão.
Uma gaivota, só uma gaivota
que, inquieta, vai esvoaçando
no meu peito e nele não pousa.

Sou agora, aqui, um arquipélago todo
em movimento.
Nove ilhas, uma a uma
alinhadas ao longo do meu destino,
ancoradas nesta terra
vermelha e seca e quente e verde,
exuberância de sentidos e odores e gente
e odores e gente e odores e outra gente.

Aqui, não tenho casa.
Aqui não é a minha casa.
Nem esta gente é a minha gente.
Aqui, não tenho a minha gente.

E os odores, e os odores.

Os odores, aqui não são de sal nem de peixe,
sequer da terra, do verde da minha terra
sempre a cair, lavrada e pronta para o mar
que, lá em baixo a recebe e a abraça.
É a minha terra feita uma gaivota
ao sabor das marés que, de longe
me vão salpicando o pensamento e a saudade.

Eu trago, companheiros,
nove ilhas cravadas no meu peito
e a saudade toda.


António F. Martins


1 comentário:

jorge vicente disse...

Belíssimo poema, meu amigo!

Grande abraço!
Jorge Vicente