quarta-feira, 8 de julho de 2015

O último voo da gaivota (Poemas da guerra)


O último voo da gaivota
(Poemas da guerra)


Nunca o teu sonho foi voar
e tiveste medo naquele voo
que, já distante dos Açores
te trouxe, já soldado,
escala em escala, terra em terra,
de Lisboa até ao mais profundo
do que era o mais profundo do Niassa.

O teu desconforto era sempre as asas.
Um homem não nasceu para voar
e não era ser um pássaro que querias,
nem sequer uma gaivota
daquelas que te encantavam memória e alma
nos teus sonhos com o mar da tua ilha
e o abrigado da tua aldeia e o barco
e a faina e o peixe e as redes,
malhas com que tecias a apanhavas vida e sonhos,
entre mar alto e terra firme.

Nunca um voo de gaivota e prendeu
ou te levou que não fosse no olhar.
Só mar alto e terra firme.

Um dia, numa tarde quente húmida
como eram todas as tardes no Niassa,
fez-se de repente calor e logo frio.
E tu voaste.
Tu que não gostavas de voar e que não querias,
voaste dez verticais metros, não mais,
seis dolorosas braças de mar em terra,
agarrado ao dorso retorcido de uma Berliet.
E nem uma gaivota. Nem uma.
Nem um salpico de vida.
Nem uma aragem de mar,
só vento quente e o teu derradeiro voo.

Às vezes, na tua aldeia, no porto,
junto ao mar, em terra firme,
há quem chame por ti e te veja
feito gaivota pousada nas ondas,
parecendo descansar, esquecida no mar.

Ou, quem sabe, esperando a tua volta,
do mar.


AntónioFMartins


1 comentário:

Unknown disse...

Como eu o compreendo, foram dois anos no Leste de Angola, ainda hoje em noites de insónias por vezes vem á memória esses tempos de meninos, sim ,meninos grandes que alguém achou por bem dar uma G3 para defender Portugal(treta)

Às vezes, na tua aldeia, no porto,
junto ao mar, em terra firme,
há quem chame por ti e te veja
feito gaivota pousada nas ondas,
parecendo descansar, esquecida no mar.
.Obrigado
Martins