quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Um cais em mim (Poemas do mar)

Um cais em mim
(Poemas do mar)


Não,
não tires o vento norte
dos teus olhos
nem seques esse mar
que sinto em ti,
lágrima a lágrima
a fugir-te face a baixo
como um barco a naufragar
nas rochas que nem sei,
dentro de mim.

Não,
não afastes o vento norte
do teu rosto
e traz-me o mar todo
no todo de um pedaço
dos teus olhos
que eu tenho para ti
um cais aberto
e um mar de lágrimas
secando, ancoradas 
no meu peito.


AntónioFMartins


Tudo e nada em mim (Poemas acerca de tudo)

Tudo e nada em mim
(Poemas acerca de tudo)


Eu sou o barco naufragando 
atormentado na bonança
e o vento forte que não sopra.
Eu sou a flor e o cardo,
a exuberância e o deserto.
Tudo em mim.

Em mim é o bom e o mau,
a boa nova e a tragédia
tudo a acontecer ao mesmo tempo.
O cordeiro e o lobo
os dois em mim.
Eu sou a ave de rapina que não voa,
o mar todo num ribeiro
e o tudo e o nada.

Não sendo, eu sou
e tudo o que sou nunca fui
nem conheço nada do que vi.
Eu não sei nada do tudo que sei.
Eu sou o grito em silêncio
do lugar onde nasci e nunca estive!
Eu sou feito de tudo o que não sou    
e de tudo o que em mim está por fazer. 

Eu estou e não estou aqui 
que o meu destino é estar 
sem nunca acontecer.



AntónioFMartins

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Panóptico (Poemas acerca de tudo)

Panóptico
(Poemas acerca de tudo)


De todos os lados
me vês,
de todos os lados
me persegues
e me encontras
com o teu olhar
diante do meu olhar
escondido e fugidio
de dentro de um destino
perpetuamente circular.

Trezentos
e sessenta graus,
um a um
e vês-me aqui,
todos os dias aqui
e nem sei 
se no centro
de ti ou de mim
se em qualquer ponta
sem ponta
em que me não vejas
nem eu te veja a ti.
Sem ponta.

Cercas-me assim a vida
num raio,
entre o centro e o perímetro 
de nós dois
e eu não sei
como sair deste lugar
Não sei como fugir
desta prisão,
mais que prisão
quase loucura
do olhar do teu olhar
que de todos os lados
me vê e me persegue.



AntónioFMartins


sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Cai todo sobre mim, céu (Poemas acerca de tudo)

Cai todo sobre mim, céu
(Poemas acerca de tudo)


Cai todo sobre mim, céu,
carregado, imenso e medonho.
Cai todo sobre mim, céu,
que eu não sou teu.
Que eu nunca serei teu.
Eu não sou daqui,
deste lugar escavado no tempo,
no chão do tempo,
da terra por lavrar.
Aqui onde não chove.
Nunca.

Aqui só vejo,
um céu carregado, 
imenso e medonho
e não há, nem casas, 
nem gente,
nem sombras de mim.
Nada que eu conheça vejo aqui.
Só um lugar perdido,
talvez esse lugar 
escavado no tempo
do chão do tempo,
talvez no próprio tempo
do meu chão.
Talvez no tempo e no espaço
das memórias que eu não sei.

Cai todo sobre mim, céu,
carregado, imenso e medonho.
Cai todo sobre mim, céu,
que eu não sou teu
nem sou já eu que estou aqui
e o meu corpo treme,
talvez dos frios,
talvez dos medos
ou dos ventos,
talvez da chuva fria que não cai.
Cai todo sobre mim, céu,
que eu não sou daqui,
deste lugar escavado no tempo.

Cai todo sobre mim, céu,
carregado, imenso e medonho
que eu já eu não sou.

AntónioFMartins


terça-feira, 20 de outubro de 2015

Madrugada (Poemas acerca de tudo)

Madrugada
(Poemas acerca de tudo)


Traz-me
dos frios ventos
da noite
a madrugada
toda,
inteira
e abrigada
no fundo
dos teus olhos
e olha
fixamente 
os meus.

Derrama
então
em mim,
como se 
trouxesses
neles
plena
toda a noite
e a madrugada,
todas
as lágrimas
dos teus olhos,
do teu
olhar,
como se deles
brotassem,
constantes,
todas
as sombras
da cidade.

A madrugada.


AntónioFMartins

Encontra-me (Poemas acerca de tudo)

Encontra-me
(Poemas acerca de tudo)

Partindo
partimos de nós 
todas as horas, 
todos os dias, 
dos rios plenos 
sem margens
para os mares 
todos do mar. 

Para o mar chão 
do pensamento. 

Vou agora ,
empurrado pelo vento. 

Encontra-me 
nas velas da distância. 

Busca-me.
Estarei lá.

AntónioFMartins


quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Anda comigo pela cidade (Escrevendo e desenhando pelo Porto)

Anda comigo pela cidade
(Escrevendo e desenhando pelo Porto)


Anda comigo 
de novo. 
Vamos caminhar 
pela cidade, 
de mão dada, 
rua a rua, 
avenida a avenida, 
praça a praça. 
Perder-nos-emos 
certamente 
na suave claridade 
das suas sombras 
de granito e barro 
e nas memórias 
dos lugares. 

Anda comigo 
de novo. 
A cada esquina, 
a cidade 
parece abrir-nos 
os caminhos 
e indicar-nos 
os destinos 
um a um,
levando-nos 
com ela e nela, 
a cada passo,
entrando 
na História 
e na memória, 
porque aqui 
tudo é a memória, 
tudo é a História.

Aqui, 
em tudo somos nós, 
em tudo é a pátria. 

Anda comigo 
de novo. 
Vamos caminhar 
pela cidade.


AntónioFMartins


terça-feira, 6 de outubro de 2015

Barco Valboeiro (Poemas acerca de tudo)


Barco Valboeiro
(Poemas acerca de tudo)


Leva-me no teu barco valboeiro,
arma a tua vela carangueja e faz-te ao rio.
Rio acima ou ao sabor da corrente
vamos à lampreia, ao sável, à tainha,
ao muge e à enguia,
ou então atravessa-me para a outra margem
a margem esquerda do Douro
e traz-me de novo ao cais desta Ribeira do Abade.
Não me posso afastar de ti.

Leva-me no teu barco valboeiro,
Douro acima, navegando pelos ventos frios da nortada.
Abrigado no conforto da tua camareta
verei a Patuleia toda sentada à mesa em Gramido
e o Douro correndo entre bandeiras brancas
e ali, uma pátria toda, de novo a renascer.
Deixa que, logo acima, eu veja o terno Porto
e que até à Régua seja sem medida
a paixão desta viagem em que,
mais que um homem, me sinto um mastro e uma vela.

Leva-me no teu barco valboeiro
e chegaremos nele a toda a parte.
Também ao mar, ao Atlântico mar
e à espuma e ao sol de anunciados ocasos,
e aí lançaremos as redes finas, artes velhas do destino
que puxaremos plenas de futuro e esperança,
e então acenaremos aos outros barcos,
aos outros barcos que não são barcos como o nosso,
Que não são barcos do rio, do mar e da terra.
Que não são barcos valboeiros.
Regressaremos então ao cais.

Leva-me no teu barco valboeiro
acosta e eu esperarei no cais o pão
e talvez uma linda padeirinha de Avintes
que irei levar a passear Douro acima
ou, quem sabe, pela foz até ao mar
onde os pescadores e as sereias se namoram
e em segredo, diz-se, loucamente se amam.
Voltaremos depois, já namorados
com o peixe e o pão
à Praia da Ribeira do Abade

Leva-me no teu barco valboeiro
até ao cais,
vamos sair terra a dentro
até à capelinha de S. Pedro,
e lá rezaremos a Cristo e ao Santo Padroeiro
e juntos sairemos  de mão dada
em devota procissão
sobre um caminho de flores até ao Douro,
até ao cais.

Leva-me no teu barco valboeiro
e do Douro mais profundo
das correntes mais fundas que puderes
colhe-me algas, fios d’ouro
e vai-me tecendo com ternas mãos um coração
que em fina filigrana se desprenderá do meu peito
e, depois, da madeira de um velho rabelo
talha no meu corpo todo
o mais belo barco saveiro,
a garrar rio abaixo, rumo à foz.
Vem comigo.
Leva-me e deixa-me no cais.


AntónioFMartins


segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Anda ver a minha rua (Escrevendo e desenhando por Lisboa)


Anda ver a minha rua
(Escrevendo e desenhando por Lisboa)


Vamos sair na próxima,
meu amor.
Estamos em Alfama.

Anda ver a rua onde eu nasci ,
encostadinha à Sé,
a rua do Barão.

Ainda ouço por aqui
o sereno toque dos sinos
marcando o tempo das horas
e, à tardinha,
o tempo da volta das gentes
e das trindades.
E, então, relembro-me,
envolto em brancos lençóis
de ternura e muitos sonhos,
de apertar, pequenino,
a mão suave
e firme de minha mãe
e, adormecendo,
voar como gaivota
até ao Tejo, lá em baixo,
pousando na proa direita
de uma fragata.

Anda, amor,
vamos descer
a rua onde nasci,
vou mostrar-te a igreja
de S. João da Praça.
Foi aqui o meu baptismo.

As pessoas,
como tantas vezes digo,
são como as árvores,
quanto mais a sua copa se afasta da terra
mais as suas raízes nela se entranham.

Ainda, vamos à Sé e a Santo António,
meu amor.
Anda.


AntónioFMartins