quinta-feira, 25 de junho de 2015

Nunca se volta (Poemas da guerra)

Nunca se volta
(Poemas da guerra)


De repente, um tiro.
Seco.
De longe, do invisível,
atinge-me em cheio
a alma e a memória,
do meio do nada e do silêncio
que aqui é em tudo,
e então eu caio,
desamparado, em mim
e tento ouvir se ainda,
mesmo angustiado,
bate o coração
que há muito
já não tenho no meu peito,
perdido vez a vez
em cada tiro, muitas vezes,
ou afogado
no mar de ventos
das ondas do capim.

De repente
eu já não sei se estou,
se vivo,
se o que sinto é dor,
se é sangue,
se é suor,
se é medo ou só um grito
que não sai,
preso em mim.

De repente, um tiro.
Seco.
E a memória toda
acontece.
Um tiro na noite
e no meu sono.
E então acordo.

Já não é aqui o nada,
o silêncio,
o longe ou o invisível
mas eu sinto-os aqui,
marcados a ferro
na minha pele,
cada tiro e cada lugar
de onde um homem,
afinal,
mesmo voltando,
parece que deles
nunca mais volta.

E então
eu tento adormecer
e digo-me:
Eu já não durmo longe,
num colchão de insónias,
mato e pedras
e há muito tempo
que não sei da guerra,
nada.
Nem há trilhos,
nem picadas,
nem minas no meu quarto.

Sossega António.
Dorme.
Agora é aqui.
Aqui, António.

E então, por vezes,
acalmadas as memórias,
quase que adormeço.

Mas, de repente,
volta um tiro.
Seco.
De longe.
Talvez do invisível
ou da noite distante
do meu quarto
e então, aqui,
eu volto a não saber
se é dor,
se é suor,
se é medo
ou só um grito
que não sai,
ainda preso em mim.


AntónioFMartins

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